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Leia um trecho de Corpos hackeados, novo livro de Andrea Nunes

29/09/2021

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A escritora pernambucana Andrea Nunes, vencedora do Prêmio Aberst de 2019 com o romance Jogo de cena (Cepe Editora), prepara-se para lançar, em novembro, o seu novo livro: Corpos hackeados.


A obra, novamente editada pela Cepe Editora, tem uma trama surpreendente. A partir da perspectiva de desenvolvimento de uma tecnologia que permite a impressão de órgãos para transplante em humanos, eventos misteriosos começam a acontecer ao redor de dois personagens: o pesquisador Gustavo, formado em Medicina, e a auditora Pietra, que atua na companhia de seguros do pai.


Entrando nos meandros da bioética, Corpos hackeados é um romance envolvente, que mescla ciência, arte, religião, investigação e o poder sobre os corpos.


Leia o trecho inicial do romance Corpos hackeados, de Andrea Nunes:


PRÓLOGO


Antônio nem suspeitava que aqueles seriam os seus dez últimos minutos de existência.


Com o documento de alta hospitalar finalmente assinado, sentia, na verdade, como se tivesse nascido de novo.


Ele passou a mão no queixo, os dedos brincando com a barba de três dias que negligenciara durante a internação, enquanto analisava tudo o que lhe acontecera.


Aqueles haviam sido os dias mais agitados de sua vida, pois tinha dado entrada num hospital beneficente para retirar uma pedra nos rins, que vinha incomodando-o há semanas, e fora muito bem atendido ali. Na verdade, bem atendido demais para os padrões da saúde pública brasileira.


Depois de uma bateria de exames, foi mandado para casa, deixando contatos para ser avisado quando surgisse uma vaga para a intervenção cirúrgica.


Ficou surpreso quando a moça de sapatos scarpins de verniz bateu em sua porta dois dias depois, lá na comunidade, dizendo que era do hospital. Não esperava que alguém viesse pessoalmente avisar sobre a vaga para a cirurgia. Nem esperava que essa vaga surgisse tão cedo.


A moça, jovem e educada, sentou-se na beira de sua poltrona com um maço de papéis na mão, e disse que, segundo as informações levantadas pela equipe de colaboradores do hospital, Antônio “atendia ao perfil econômico” da proposta que eles pretendiam fazer.


Antônio ficou cismado. Aliás, estava chateado: será que não iam mais tratar seu cálculo renal na cota beneficente? Será que o expulsariam do hospital, como acontecera com sua vizinha? Lembrou-se de que a coitada tinha ido extrair uma hérnia e descobriram que ela tinha plano de saúde, portanto não poderia se tratar de graça.


Bem, no caso dele não poderia ser isso, pois ele  não tinha plano de saúde há muitos anos. Desempregado, vivia de biscates e virações para poder dar alguma contribuição nas despesas da filha Edilane, que vivia com a tia desde a morte da mãe.


Edilane era a coisa mais preciosa na vida de Antônio, e todo trocado extra que entrava no bolso  ele destinava para comprar roupas novas para a menina, que estava ficando mocinha e precisava se arrumar melhor.


Foi por causa de Edilane que ele dissera “sim” para a moça dos sapatos de rica que o visitara naquele dia, com aquele sorriso esticado. Ele se lembrava, sobretudo, dos dentes. A boca arreganhada de simpatia parecia, na verdade, um tanto assustadora para ele. Antônio, que era um zé ninguém, vivendo à margem da sociedade, encandeou-se com aquela brancura dental. Não havia muitos sorrisos do tipo Colgate em sua vida.  


Mas essa visitante era só o que eles chamavam de “aliciadora”. Um raminho insignificante da organização. Alguém que sabia que ele era um pai solteiro, devotado à filha e com grandes dificuldades financeiras. A mulher tinha até os registros da transferência da filha dele da escola particular para a pública, e o preço da aula de judô que ela havia pedido, mas que ele não pôde pagar. Essa aliciadora explicou que ele poderia receber um bom dinheiro se quisesse vender o rim. Na verdade, o processo seria bem simples, só precisava assinar uns documentos, umas procurações, coisa de rotina. Ia ser operado no mesmo complexo hospitalar onde comparecera para fazer os exames. O Hospital da Fundação Bio recebia pacientes do SUS porque era dedicado às atividades filantrópicas desenvolvidas pela Fundação. Mas Antônio seria operado num local diferente: a ala clandestina, que funcionava num bloco supostamente desativado do complexo hospitalar.


As autoridades que comandavam o local não teriam como suspeitar de que, numa ala onde só funcionava oficialmente a lavanderia hospitalar, funcionavam também pequenas salas de cirurgia clandestinas, camufladas sob o disfarce de área isolada para obras de reforma. Antônio daria entrada pelos canais normais do Hospital da Fundação Bio, mas, em vez de extrair a pedra no rim direito, seria discretamente removido para a ala clandestina para a extração do rim esquerdo, saudável. Passaria uma noite internado ali e, depois, seria transferido para a pousada que a organização mantinha perto do hospital, para a recuperação completa. Tudo parecia muito simples e organizado. Naturalmente, ele não poderia dizer nada a ninguém. Viveria muito bem com o outro rim, e poderia ter uma vida mais confortável, já que o dinheirinho daria para saldar as dívidas e ainda dar entrada no próprio negócio.


Não era isso que Antônio estava esperando, afinal? Pensou logo em Edilane, que arregalaria os olhos quando ele lhe comprasse aquela calça jeans de marca que havia visto outro dia, no shopping. Ela não pedira, é claro. Mas ele notara o olho comprido da menina quando passaram pela frente da vitrine, a cobiça da adolescente que a fizera interromper o passo por uma fração de segundo diante da peça de roupa. Depois, seu coração de pai encolhera ao ver o quão rapidamente ela se recompôs, desviando os olhos com fingida desatenção, para não ser flagrada desejando o que não era para o seu bico. Antônio odiou aquela resignação platônica de quem se habituara a não poder ter. Aquilo estava doendo cada vez mais: não poder dar pequenos luxos à filha. Mocinhas adoram se vestir na moda, e Edilane, por mais simples que fosse, não era diferente...


Quando ele assinou a papelada, não chegou sequer a ler aquelas letras tão pequenas. Estava pensando mesmo era no box que vira para alugar no mercado público, onde poderia montar seu armarinho quando a grana entrasse. Só Deus sabia como aquele dinheiro viria em boa hora.


A ficha de Antônio só caiu de verdade quando entrou no pequeno bloco cirúrgico clandestino. Deu por si somente quando percebeu as rodas da maca que o conduzia trepidando suavemente ao deslizar, as luzes redondas da mesa de cirurgia circundando sua cabeça, e dois pares de olhos frios por trás das máscaras cirúrgicas se aproximando, cercando-o como abutres que rondavam a presa.


O pânico o atingiu com força quando avistou os instrumentos cirúrgicos. Pelo amor de Deus, eles iriam mutilar seu corpo! Extirpariam um rim saudável, numa clínica clandestina que tinha o insuspeitado status de obra pública abandonada. E ele poderia morrer ali. Para todos os efeitos, seu corpo voltaria para a “ala oficial” do hospital e aquilo seria apenas uma fatalidade na extração desastrada do cálculo que ele tinha no outro rim!


Olhou de novo para o sinistro halo luminoso de luzes cirúrgicas em torno de sua cabeça e enxergou a cena tal como ela era: a auréola, o mártir, a penitência e a morte. Ele jazia impotente num altar forrado de branco, um cordeiro manso sacrificado em oferenda... ao quê?


A nada!


Nem morto ele seria alguém. Não haveria um minuto de glória sequer! Quem é que se importaria com uma coisa dessas?  Gente pobre morria aos montes por falta de estrutura nesses hospitais...


Ficou surpreso por ter conseguido dar um pulo e correr. Não houve barreira humana nem física que tentasse impedi-lo, que o forçasse a ficar naquela sala de cirurgia.


Apanhou a calça que ficara pendurada na antessala do bloco cirúrgico, e meteu-a pelas pernas de qualquer jeito. Não houve tempo para calçar os sapatos, pois nesse momento começou a escutar os passos que vinham em sua direção, e entendeu que precisava sair dali. Mesmo estando naquele ambiente sombrio e deserto, seu senso de orientação o fez seguir na direção do barulho constante dos equipamentos da lavanderia industrial, que era por onde se dava a entrada daquela ala clandestina. Ele lembrava disso.


Guiando-se mais pelos sons e lembranças, ele se viu entrando pela única porta que dava acesso ao ruído metálico daquelas máquinas. Dali, atravessou um cubículo escuro cheio de sacos de roupas. Não atinava como tinham passado a sua maca por ali, mas se lembrava bem do cheiro ruim daqueles sacos. Estava no caminho certo. A porta que alcançou do outro lado dava acesso a um ambiente bem mais amplo e ventilado. Não havia funcionários ali, e ele atravessou aquela sala repleta de lavadoras e secadoras gigantes que emitiam rosnados ensurdecedores, correndo e se esgueirando como se fosse ele o bandido. Foi daquele modo que saiu da lavanderia e, consequentemente, do pavilhão abandonado.


Depois daquilo, ele não saberia dizer se correra por horas, ou por minutos. Os rostos e salas pelos quais passou ficaram registrados vagamente, como borrões em sua memória. Em determinado momento, notou que já havia alcançado a parte não clandestina do hospital, onde pacientes normais, médicos e enfermeiros circulavam tranquilamente. Mas se perguntava onde diabos ficava a saída.


Não demoraram a encontrá-lo, perdido na imensidão daqueles corredores. Percebeu que, ao abordá-lo, todos foram amáveis e compreensivos. Disseram que ele não precisava se preocupar, pois aquela era uma reação comum nas pessoas, que ficasse sossegado, porque eles compreendiam a desistência da cirurgia.


Antônio estranhara um pouco a insistência daquelas pessoas ao perguntarem se ele havia recebido visitas ou entrado em contato com alguém pelo telefone, nos momentos seguintes à sua escapada da ala clandestina, antes de ser localizado e reconduzido para o quarto onde antes aguardara a cirurgia, na ala oficial do hospital.


Ele não soube bem ao certo o motivo de ter ocultado daquele médico que o visitara no quarto o breve encontro que tivera com sua filha.


Antônio quase esbarrara com Edilane em sua “fuga” pelo corredor da enfermaria, poucos minutos antes de ser localizado pela equipe médica. Mas costumava ser muito cuidadoso com tudo o que dizia respeito à filha, e um pouco intuitivo também. Olhou nos olhos do médico e simplesmente decidiu que não era necessário contar que havia visto a menina depois de tudo o que passara naquele dia.


Mas o doutor parecia muito gente boa, e ele até relaxou um pouco durante a conversa.  Falaram de futebol, do desempenho dos seus times no Campeonato brasileiro, e ele comentou que estava assinando sua alta. Acrescentou casualmente que, se Antônio mudasse de ideia nos próximos dias, talvez ainda estivessem precisando do rim. Prescreveu alguns analgésicos e calmantes, e disse que Antônio fizesse novos exames do cálculo renal em três meses. Ainda estava muito pequeno para precisar de cirurgia. Fez uma ligeira observação sobre a pressão arterial de Antônio, que sofrera um pico hipertensivo por conta da emoção, e recomendara mais duas horas de descanso com medicação anti-hipertensiva intravenosa. Depois, estaria liberado, acrescentou o médico, com uma piscadela.


Quando a enfermeira muito jovem entrou no quarto duas horas mais tarde, com um estetoscópio pendurado no pescoço, Antônio ficou satisfeito ao perceber que finalmente iria embora dali.


Ela aproximou-se com olhos muito tranquilos e, enquanto checava a auscultação cardíaca, comentou que a pulseira hospitalar que Antônio usara deveria ter caído durante a correria que ele empreendera nos corredores do hospital. Então, perguntou como estava se sentindo.


— Agora estou bem. Acho que minha pressão deve estar bem baixinha, porque estou até com sono. Meus olhos estão muito pesados — comentou Antônio, intrigado em perceber que sua voz também estava pastosa, a língua enrolando ao proferir cada palavra.


A jovem deu um sorriso rápido enquanto conferia o soro e informou:


— O senhor foi dopado com um calmante muito forte nessa medicação. Na verdade, é comum no protocolo hospitalar ministrar calmantes em crises hipertensivas decorrentes de descontrole emocional.


Ele ficou ligeiramente alarmado quando viu a moça suspender seu braço esquerdo, que estava tão inerte a ponto de ele mal conseguir mexer os dedos.


— Acho que a dosagem foi um pouco forte demais... — comentou, lutando para permanecer atento enquanto ela desembrulhava uma seringa e cutucava a axila do braço suspenso, aproximando a agulha do seu corpo.


— O que voschhê... colocou... nesshha injeção para mim? O que… exxtá... fazendo?


Os olhos da mulher assumiram um brilho frio que conseguiu arrepiar a nuca de Antônio, mesmo em seu estado de torpor. Ela levou a seringa vazia para o campo de visão dele, puxando o êmbolo de modo que se enchesse de ar, enquanto sussurrava:


— Na verdade, Antônio, como você vê, não há absolutamente nada nessa seringa. Só ar. E eu vou realmente aplicá-la em você agora, bem na sua axila.


Ele comprimiu os olhos pesados e sacudiu a cabeça:


— Nhã há nada aí? Mashhh... que diabo...


A frase foi interrompida pelo pequeno espasmo de dor que ele sentiu quando a agulha penetrou em sua carne, num ponto específico da axila esquerda.


— Não há modo mais eficaz de simular um infarto natural do que injetar ar no seu sistema circulatório bem nesse ponto, Antônio. Chama-se embolia gasosa.


A pupila de Antônio dilatava de pânico enquanto assistia, completamente inerte, a narrativa de seu fim, em tempo real, pela voz calma de sua assassina.


 — Não se preocupe, você morrerá muito rápido.  As bolhas de ar obstruirão seus vasos sanguíneos em instantes, e a morte será limpa e discreta.


Lágrimas se acumularam nos cantos dos olhos de Antônio. Não era mais possível distinguir se era dor ou medo. Ele engolia em seco de modo compulsivo, como se tentasse degustar os últimos segundos de consciência.


— Sabe por que adotamos esse método? É que nenhum perito médico legista, por mais minucioso que seja, procura por uma picada de agulha entre os pelos da axila de um infartado para averiguar se esse infarto foi provocado...